Reader Reports, Sample Translations, and Editing
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Ilze provides reader reports and sample translations of literary works by Brazilian authors. She also edits English translations of literary texts written originally in Portuguese.
Non-Literary Translations
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While Ilze translates literary fiction from Portuguese to English only, she translates a variety of non-literary texts in several disciplines from Portuguese to English and English to Portuguese.
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Marília Arnaud Alça Seu Vôo Mais Alto com O Pássaro Secreto
Por Ilze Duarte
Resenha publicada em outubro de 2021 no suplemento Correio das Artes do jornal paraibano A União
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Em 2014, encontrei numa livraria de São Paulo Suíte de Silêncios, o primeiro romance de Marília Arnaud. Li a história vorazmente e fiquei querendo mais. Queria saborear novamente a escrita convidativa e a linguagem poética que tanto haviam me encantado. Queria também saber mais sobre a autora dessa obra delicada e habilmente construída. Continuei lendo e pesquisando. Descobri que Marília era uma excelente contista e que minha opinião era também a dos críticos e dos juízes de concursos literários: Marília havia sido premiada várias vezes por seus contos individuais e livros de contos. Numa conversa com Fábio Lucas para o projeto Conexão ViaOmar, Marília comenta que sempre gostou de concursos literários, ao que o entrevistador responde: “São os concursos literários que gostam de você.”
Os concursos literários com certeza gostam de Marília e com toda razão. Seu romance mais recente, O Pássaro Secreto (Editora Record, 2021), foi escolhido entre 2.400 obras como o vencedor do prestigioso Prêmio Kindle de Literatura em 2021. Nesse denso drama psicológico, a protagonista-narradora Aglaia Negromonte, ao completar quarenta anos, inicia uma examinação franca e comovente dos eventos de sua infância e adolescência e da dinâmica familiar que a moldaram. Com muito fôlego e pulso firme, Marília alterna a narrativa entre as vozes da Aglaia-menina e da Aglaia-mulher. Embora a maior parte da narrativa seja feita pela voz da menina, os capítulos relatados pela voz da mulher revelam de forma contundente como os efeitos de seus anos de formação—e como Marília sugere, deformação—persistem na psique da Aglaia-mulher e ainda a afetam profundamente.
A família Negromonte é dominada pelo pai de Aglaia, o emocionalmente distante e auto-centrado ator e dramaturgo Heleno Negromonte. Sua mãe, a bela e inteligente Luísa, cujo trabalho como professora universitária sustenta a família finceiramente, submete-se às vontades do marido. Até mesmo na escolha dos nomes das filhas, Heleno reina supremo. Ele escolhe para suas filhas os nomes de duas das três graças gregas: Aglaia e Eufrosine. Luísa protesta não só porque não compartilha do amor do marido à cultura grega como também porque receia não ter uma terceira filha—que receberia o nome da graça Thalia—para completar o trio. Mas essa batalha, como muitas outras, Luísa acaba perdendo.
A vida de Heleno gira em torno da literatura e do teatro e é nesses interesses que ele foca sua atenção e sua energia. Tudo mais é relegado a um segundo plano, inclusive sua família. Aglaia sente-se ignorada por ele e pela mãe, que embora seja mais dedicada à família, não consegue entender nem ajudar a filha. Uma menina extremamente inteligente e sensível, Aglaia vivencia o início da puberdade com apreensão e desconforto. Com seu corpo rechonchudo e seu intelecto precoce, não se enturma com os outros alunos da escola, que ela despreza e por quem é desprezada. E seu ambiente familiar, em vez de acolhê-la e fortalecê-la, acaba por corroer sua auto-estima ainda mais. Em seu frágil estado emocional, Aglaia encontra-se perigosamente susceptível à ansiedade e aos distúrbios alimentares.
A angústia de Aglaia toma a forma de uma entidade que ela sente em seu corpo e sua alma e que denomina “a Coisa.” Sua manifestação mais frequente é a de uma criatura alada, um pássaro secreto, pois a gama de emoções—conflitantes, angustiantes, assustadoras—que sente permanecem dentro dela, sem possibilidade de expressão. Em retrospecto, Aglaia descreve assim a criatura:
É provável que nesse tempo a Coisa já engatinhasse dentro de mim. Lembro-me de alguns episódios, mas não sei precisar quando começaram. Às vezes, sentia a dureza das suas asas espetando-me as costelas, o peso da sua cabeça pontuda esmagando-me os pulmões, e eu puxava o ar, e uns pios agudos me esfolavam o peito, e eu me debatia como um peixe fora d’água, e me debateria até a morte se não aparecesse alguém para me salvar.
O conflito principal da história ocorre quando, aos treze anos, Aglaia vê-se obrigada a dividir a atenção e afeição de seus pais com uma meia-irmã, cuja existência ela até então desconhecia. O nome da menina é—e como poderia deixar de ser?—Thalie. Nascida de um caso entre Heleno e uma atriz francesa, Thalie havia perdido a mãe e a avó. Sozinha no mundo, é enviada aos Negromonte para viver com eles. Bonita, inteligente e bondosa, Thalie encanta a todos na família, inclusive Luísa. Aglaia sente-se traída por todos, que recebem o novo membro da família com um desvelo que Aglaia nunca sentira deles, com exceção de sua amada avó Sarita. Até Demian, o rapaz por quem Aglaia nutre uma paixão secreta, sucumbe ao charme de Thalie.
Dominada pelo ciúme e pelo desejo de vingança, Aglaia toma atitudes cada vez mais repreensíveis e agressivas. Impotentes diante do comportamento perturbador de Aglaia, Heleno e Luísa levam a filha a vários psicoterapeutas e até a internam (abandonam?) numa clínica psiquiátrica. Os psicotrópicos a entorpecem, mas não eliminam a ansiedade e a imensa tristeza que ela sente. Nem o afeto da avó nem os esforços dos terapeutas conseguem demover Aglaia de sua determinação em destruir o que lhe causa dor e, em consequência, destruir-se a si mesma. Aglaia encontra-se irremediavelmente presa num círculo vicioso de ira, vingança e culpa.
Com descrições vívidas e evocativas, Marília revela a personalidade compulsiva de Aglaia, um presságio da obsessão que ela virá a desenvolver mais tarde. Os apetites de Aglaia são vorazes: ela consome grandes quantidades de comida, música e literatura. A trilha sonora de sua juventude—Djavan, Renato Russo, Marisa Monte, entre muitos outros—é extensa e onipresente, como é a de muitos adolescentes. No caso de Aglaia, porém, essa trilha sonora é complementada por um repertório de obras teatrais de uma intensidade e um peso pouco apropriados à sua idade. Aos treze anos, ela já havia lido ou presenciado seu pai recitar as maiores tragédias Shakesperianas. Se por um lado a literatura enriquece a vida intelectual de Aglaia, por outro ela exacerba sua tristeza e desespero. Aglaia identifica-se, parece-me em excesso, com os personagens dessas tragédias:
Bem que eu e o meu pai poderíamos ser personagens de Shakespeare. Como um pai pode transformar a vida de uma filha numa tragédia? Não preciso ir longe. Não preciso chegar até o rei Lear e Cordélia. A Bretanha era bem ali em nossa casa e, um dia, quem sabe, o meu pai arrancaria os próprios olhos por haver desprezado a filha que verdadeiramente o amava.
O relacionamento de Aglaia com seu pai é, de fato, particularmente complexo. Ela o admira imensamente, mas despreza o que considera hipócrita e injusto em seu comportamento como esposo e pai. Aglaia ressente-se também do comportamento da mãe, uma mulher desenvolta e capaz, cuja submissão aos caprichos e ausência do marido a deixam perplexa e enraivecida.
Marília Arnaud retrata essa estrutura familiar patriarcal com sensibilidade e profundidade. A supremacia de Heleno Negromonte exemplifica um sistema obsoleto e perverso, que no entanto continua a florescer no solo fértil dos complexos relacionamentos familiares, onde o oprimido se submete a menos do que merece para preservar o pouco que tem, custe o que custar. E o custo é alto. Marília não poupa as mulheres nesses relacionamentos: descreve-as em todas as suas contradições. Até Sarita, sábia e conscienciosa, justifica o comportamento do filho. Aglaia repudia a posição da avó, que continua a defender Heleno:
Minha avó Sarita contava-me fatos da adolescência e da infância do filho, na tentativa de me convencer de que ele era o que sempre fora, o que sua natureza determinava, tanto quanto tinha olhos azuis, pele clara e cabelos castanhos. Ah! Então estaria nos genes do meu pai a certeza de que o mundo só existia porque ele existia? Vovó entortava a boca, um trejeito de reprovação, e afirmava que muitas meninas gostariam de ter como pai Heleno Negromonte, um homem culto, espirituoso, carismático, além de respeitado profissionalmente.
Os temas abordados em O Pássaro Secreto—os males do patriarcado, as falhas dos tratamentos de distúrbios emocionais nos anos 80 e 90, os impactos do abandono emocional entre os mais carentes de afeto—são complexos e penosos, mas Marília Arnaud os desenvolve com maestria e o resultado é uma leitura altamente gratificante. O enredo se desencadeia de maneira fluida, num ritmo estimulante e envolvente, surpreendente em certos trechos mas sempre coerente à lógica interna da narrativa. O mundo interior dos personagens é descrito com tal riqueza de detalhes que nos transportamos para a realidade de cada um, principalmente a de nossa protagonista. Vivenciamos o que ela vivencia, sentimos o que ela sente, torcemos para que ela supere suas dificuldades e agonias, página por página, capítulo por capítulo. E percorremos essa jornada guiados e enlevados pela linguagem precisa, requintada e lírica de Marília, exemplicada aqui:
Quis matar e enterrar, bem enterrado, aquele sentimento, mas as patas raivosas de algo que se alargava dentro de mim chutaram-no de um lado para o outro, como se a dificuldade do meu pai, em mim feita mágoa, fosse um feroz predador. O sentimento engalfinhou-se com algo crescente dentro de mim, uma refrega de garras e presas afiadas, sem que me chegassem forças para apartá-los.
O Pássaro Secreto não proporciona um final feliz ou uma solução fácil aos problemas examinados. Proporciona, sim, um convite à reflexão, à compreensão e à empatia, recompensas muito mais duradouras e valiosas ao leitor atento.
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